ALGUMAS LEMBRANÇAS DE CLEOFE PERSON DE MATTOS (1913-2002)
Ricardo Tacuchian*
Rio de Janeiro: Salão Leopoldo Miguez da EM/UFRJ. 9 de outubro de 2009

A doação do acervo Cleofe Person de Mattos à Escola de Música da UFRJ, e a digitalização deste acervo para ser disponibilizado on line mostra quatro vertentes de profundos significados. Primeiro, preserva o trabalho de uma das maiores musicólogas brasileiras; segundo, deixa este material sob a guarda de uma instituição centenária, já com um Arquivo precioso em sua Biblioteca; terceiro, coroa, com êxito, o trabalho de uma valorosa equipe de musicólogos e técnicos em informática, que trabalharam minuciosamente sobre este material; e, por fim, serve de exemplo para outras famílias que guardam, em suas casas, acervos particulares para os quais faltam recursos para a sua conservação adequada e espaço institucional para o seu devido uso por pesquisadores autorizados. O lugar da obra dos compositores e de documentos de pesquisadores não é a casa de seus herdeiros, mas uma instituição pública, para que esse patrimônio passe a pertencer a toda a sociedade. Assim, a família de Cleofe Person de Mattos está de parabéns por ter disponibilizado um acervo tão precioso para toda a comunidade acadêmica.

Vale lembrar que o referido acervo contém não somente documentos ligados a José Maurício, mas do período colonial e monárquico brasileiro, inclusive um valioso catálogo, incompleto, das obras de Francisco Manuel da Silva e outros importantes documentos de seu curriculum vitae.

É com muita emoção que, neste momento histórico, faço um depoimento, relembrando alguns momentos em que tive a oportunidade de conviver com Cleofe Person de Mattos, não só do ponto de vista de seus aspectos musicais, mas também humanos. A sua trajetória é notória nos registros bibliográficos disponíveis. Vamos fazer, apenas, algumas menções passageiras.

Cleofe Person de Mattos foi um dos grandes baluartes da Musicologia Brasileira. Ela dedicou sua vida a dois projetos que marcaram a cena musical da segunda metade do século XX em nosso país: o trabalho de arqueologia musical da obra do maior músico clássico e sacro brasileiro e a condução e efervescência da música coral do passado e do presente, transformando a cidade do Rio de Janeiro numa verdadeira cidade olímpica do canto coral.

A carreira de musicóloga de Cleofe Person de Mattos já se fazia sentir no ano de 1952, com a publicação, pelo Instituto Nacional do Livro, da obra pioneira Bibliografia Musical Brasileira (1820-1950), organizada por Luis Heitor Corrêa de Azevedo, com a participação de Cleofe Person de Mattos e de Mercedes de Moura Reis [Pequeno]. Esta obra nos serviu de inspiração para criarmos, na Academia Brasileira de Música, em 1995, um projeto com o mesmo nome daquele livro, para cuja coordenação convidamos a insigne bibliotecária musical Mercedes dos Reis Pequeno, uma das autoras do referido livro.

Mesmo antes da época da publicação do livro Bibliografia Musical Brasileira, Cleofe Person de Mattos já vinha se dedicando aos seus dois projetos de vida, pois o gérmen da futura Associação de Canto Coral tinha sido criado por ela, em 1941, com o nome de Coro Feminino Pró-Música, adquirindo o nome atual de Associação de Canto Coral em 1946. Suas pesquisas iniciais sobre a música do Padre José Maurício Nunes Garcia também já estavam em curso. Estas pesquisas se consubstanciaram na edição e gravação de várias obras do compositor e na publicação de dois momentos da musicologia brasileira: o Catálogo Temático das Obras de José Maurício Nunes Garcia (Rio de Janeiro: MEC, Conselho Nacional de Cultura, 1970); e José Maurício Nunes Garcia: Biografia (Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, DNL, 1997). As inúmeras edições de obras de José Maurício Nunes Garcia, publicadas pela FUNARTE, estiveram sob a supervisão da pesquisadora, que também promoveu as gravações pioneiras da ACC de obras não só do padre carioca, mas também de compositores mineiros do período colonial. Na Bibliografia Musical Brasileira da Academia de Música existem 23 entradas de trabalhos publicados pela Cleofe Person de Mattos.

Com a obra e o legado de Cleofe Person de Mattos são sobejamente conhecidos, não é nosso objetivo, neste espaço, analisá-los e mostrar a sua importância para todos nós, que somos seus herdeiros, seja no campo musicológico, no campo da prática coral, ou no campo pedagógico. Vou aproveitar a ocasião para recordar alguns momentos que pessoalmente convivi com esta mestra, depois colega e, ainda, como membro da Academia Brasileira de Música. Portanto, farei um testemunho absolutamente pessoal, em forma de depoimento, e que não está registrado em nenhuma outra fonte.

Em 1961, eu era aluno de piano da Escola de Música da UFRJ, ocasião que ocupava a representação dos alunos, como presidente do Diretório Acadêmico José Maurício Nunes Garcia. O Diretório possuía uma febril atividade cultural, mantendo duas orquestras de estudantes (uma sinfônica, a OFE, Orquestra Filarmônica Estudantil e outra de câmara, a OCAV, Orquestra de Câmera Antonio Vivaldi), um Coral Universitário, um jornal, a Tribuna Musical, um Festival de Música Contemporânea, o Festival de Novíssimos e um Centro de Estudos de Música Brasileira, o CEMB). Todas estas atividades foram encerradas com o advento do famigerado golpe militar de 1964. A fundação do Centro de Estudos de Música Brasileira ocorreu no dia 25 de novembro de 1961, com uma conferência feita por Cleofe Person de Mattos, intitulada José Maurício Nunes Garcia, um Mestre. Cleofe era professora da UFRJ e amiga dos estudantes. Na ocasião, sua palestra foi ilustrada pela primeira audição moderna de três graduais do padre-mestre, que ela acabara de descobrir e editar. O regente foi o estudante Othonio Benvenuto, que, mais tarde, transformou a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro na melhor banda militar do Brasil. Aquela foi a primeira vez que tive um contato mais direto com a professora, pesquisadora e maestrina.

Meu segundo contato mais direto que tive com a mestra foi em 1966, agora como aluno de regência. Cleofe Person de Mattos oferecia um rigorosíssimo curso de percepção musical só para regentes e que poucos alunos conseguiam concluir, pela sua extrema dificuldade. O contato semanal durante todo o ano e a frequência habitual aos ensaios e concertos da ACC me aproximaram mais daquela personalidade que, ao primeiro contato, parecia tão distante, mas que, com o tempo, se revelava uma alma gentil, generosa e muito bem humorada. Nesta década de 60 a ACC estava no seu apogeu. Em 1959 já havia apresentado a primeira audição do Magnificat-Alleluia de Villa-Lobos. Em 1963 apresentou a Missa de Stravinsky, regida pelo próprio compositor. Em 1965 a maestrina fez uma gloriosa tournée pela Europa, com a ACC, se apresentando em 7 países. Entre 1968 e 1970 Cleofe Person de Mattos promoveu os monumentais Festivais Bach, com a presença do grande organista e maestro Karl Richter.

Em 1968 foi a Paixão Segundo São João; em 1969, a Paixão Segundo São Mateus, e; em 1970, a Missa em Si de João Sebastião Bach. Richter regia as obras de Bach e dava recitais de órgão no Salão Leopoldo Miguez da Escola de Música. Participei de todos esses eventos, assistindo os ensaios e concertos e proferindo cursos sobre as obras programadas para os coristas da ACC e para o público em geral, a convite da própria Cleofe. Estes foram um terceiro momento do meu fértil contato com, a, agora, minha colega de UFRJ. Suas lições passaram a ser, além de musicais, mas também humanas. Foi graças a Cleofe Person de Mattos e à Associação de Canto Coral que tive meu primeiro contato com os modernos oratórios franceses, apresentados no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sob a regência de Jacques Pernoo. Assim, em 1964, o maestro francês apresentou, com a ACC, La Danse des Morts e Le Roi David, ambos de Arthur Honnegger. Três anos depois, Pernoo volta ao Rio de Janeiro para apresentar Jeanne D'Arc au Bûcher e, em 1969 o mesmo maestro regeu Les Choéphores, com música de Darius Milhaud e poesia de Paul Claudel, sempre com a brilhante participação da ACC e de solistas franceses. Aliás, tanto Milhaud como Claudel viveram no Rio, nos idos de 1916-1918, respectivamente como adido cultural e embaixador da França no Brasil. Esses concertos foram inesquecíveis e representaram para nós, jovens músicos, verdadeiras aulas de composição, que foram determinantes em nosso desenvolvimento criativo posterior. Que dívida temos com Cleofe Person de Mattos na formação de nosso patrimônio musical, que nos acompanharia para o resto de nossas vidas!

Um quarto momento tangenciou minha vida com a Cleofe Person de Mattos: foi em 1979 quando ela preparou o coro da ACC para a minha Cantata dos Mortos, que eu mesmo regi na III Bienal da Música Brasileira Contemporânea, em 1979, na Sala Cecília Meireles. Esta obra tinha sido proibida de ser apresentada na mesma Sala, em 1965, porque a letra era de Vinícius Moraes, um diplomata brasileiro que acabara de ser destituído de seu cargo e que era persona non grata da ditadura militar de então, além de a obra poder ser considerada uma provocação ao regime, quando falava em campos de concentração. A apresentação da Cantata dos Mortos mereceu um cuidadoso preparo de Cleofe, o que pode ser constatado pela gravação ao vivo (em disco LP em vinil), lançada pela FUNARTE, no ano seguinte da apresentação.

Ainda nesta trajetória de encontros, em momentos e situações tão diferentes, fui eleito para a Academia Brasileira de Música, em 1981, por iniciativa de meu antigo professor Francisco Mignone. Fui carinhosamente recebido pela acadêmica Cleofe Person de Mattos, que havia sido eleita para aquela casa em 1964. A Academia muito deve a essa mulher, ao mesmo tempo doce e guerreira. Em 1993 a ABM sofria uma grave crise institucional, com muitos mandados de segurança visando a normalidade regimental. Depois de várias tentativas, foi travada uma luta judicial que culminou com uma Assembléia Geral de plantão, na Escola de Música, e que saiu vitoriosa às 11 horas da noite, pela ação de nossos advogados, atuando no Fórum de plantão. Cleofe Person de Mattos, nessa ocasião, estava com 80 anos, e não arredou pé da Assembléia enquanto o juiz não desse ganho de causa ao nosso pleito. Na ocasião eu assumi a presidência da instituição, seguido, em anos posteriores, por outros ilustres acadêmicos. A Academia Brasileira de Música tem uma dívida de gratidão com essa acadêmica, e com todos os acadêmicos que lutaram por uma causa que o tempo provou que era justa. Esse era o perfil poliédrico da grande brasileira que emanava uma luz espiritual àqueles que tiveram o privilégio de conviver com ela. Ela tinha a sabedoria de Minerva e o espírito guerreiro de Diana.

A doação do acervo Cleofe Person de Mattos perpetua a memória da pesquisadora embora, simbolicamente, sua memória já estivesse perpetuada, como membro da cadeira n.o 5 da Academia Brasileira de Música, cujo patrono não poderia ser outro que o Padre José Maurício Nunes Garcia. Por essa cadeira, antes de Cleofe, passaram dois ilustres músicos sacerdotes: Frei Pedro Sinzig e o Pe. João Batista Lehmann. Atualmente a cadeira n.o 5 é ocupada pelo maestro Roberto Tibiriçá. Agora, mais do que simbolicamente, a memória de Cleofe Person de Mattos está perpetuada com o depósito de seu valioso acervo, devidamente digitalizado, para ser disponibilizado on line e na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eu me lembro de uma visita que fiz ao apartamento da Cleofe Person de Mattos, no bairro carioca da Glória. Mal conseguia entrar em sua sala, coberta de pilhas de partituras que ela estudava e classificava. Era um verdadeiro labirinto onde se escondia um grande tesouro musical que a pesquisadora tentava resgatar e preservar. Na ocasião, constatamos que ela precisava urgentemente de um assistente, para ajudá-la naquela árdua tarefa. Indiquei, então, o nome de minha aluna Angélica Farias, que trabalhou com ela durante alguns anos. Agora esse material toma forma e organização na Biblioteca da Escola de Música. O sonho da pesquisadora se materializa. O local para a guarda do valioso acervo não poderia ser mais acertado, não só pela gloriosa tradição desta casa de ensino e pesquisa, mas também porque ela foi uma das casas de Cleofe Person de Mattos. Além disso, e para concluir uma verdadeira saga mauriciana, vale lembrar que Francisco Manuel da Silva, o fundador do Conservatório de Música, hoje Escola de Música da UFRJ, foi um dileto discípulo justamente de José Maurício Nunes Garcia. Foi por esta razão que os estudantes dos idos de 60 escolheram o seu nome para batizarem o Diretório Acadêmico. A solenidade de translado do acervo Cleofe Person de Mattos corresponde, portanto, a um grande ciclo que começa com José Maurício e se completa com o início de uma nova era nas pesquisas musicológicas de nosso país: José Maurício Nunes Garcia, Francisco Manuel da Silva, Conservatório de Música, Instituto Nacional de Música, Cleofe Person de Mattos e, finalmente, Escola de Música. O círculo se fecha. A história e a vida dão muitas voltas.

* Maestro, compositor e atual presidente da Academia Brasileira de Música